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06 Jan 2021

Comissão Europeia Propõe Novas Regras para Serviços e Mercados Digitais na UE

Jorge Silva Martins
Jorge Silva Martins
Responsável de Área
João Carminho
João Carminho
Associado Sénior
Comissão Europeia Propõe Novas Regras para Serviços e Mercados Digitais na UE
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I. Introdução

Quase a fechar o ano de 2020, a Comissão Europeia deu a conhecer duas ambiciosas propostas de Regulamentos, as quais corporizam a intenção de definição de um conjunto de importantes regras aplicáveis aos serviços digitais: o Regulamento dos Serviços Digitais, que procederá ao desenvolvimento das soluções constantes da Diretiva 2000/31/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 8 de junho de 2000 (a “Diretiva sobre o Comércio Eletrónico”); e o Regulamento dos Mercados Digitais, inovador no regime que vem estabelecer e intimamente ligado ao Regulamento (UE) 2019/1150 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de junho de 2019 (o denominado Regulamento “P2B” ou “platform-to-business)”. 

Pese embora integrem o mesmo pacote legislativo, e, de certo modo, partilhem os objetivos gerais de reforço dos níveis de segurança, transparência e responsabilidade, em condições de maior concorrência, no âmbito do ecossistema digital, os dois regimes têm focos distintos: enquanto o Regulamento dos Serviços Digitais tem como principal preocupação a promoção da transparência e controlo sobre os conteúdos disponibilizados pelos intermediários em linha (“providers of intermediary services”), o Regulamento dos Mercados Digitais incide sobretudo sobre aspetos relacionados com a concorrência nos mercados online.

Analisemos, então, as principais novidades propostas por cada um destes Regulamentos.

II. O Regulamento dos Serviços Digitais

O Regulamento dos Serviços Digitais, tendo como pano de fundo a prestação de serviços da sociedade da informação, vem estabelecer um conjunto de novas regras aplicáveis a todos os serviços digitais que coloquem em contacto consumidores com bens, serviços ou conteúdos, prevendo novos procedimentos para uma rápida remoção de conteúdos ilegais, bem como uma proteção reforçada dos direitos fundamentais dos utilizadores em ambiente online. 

Entre as novas obrigações a cargo dos intermediários em linha (p.e., prestadores de acesso à rede, serviços de cloud e plataformas online, tais como redes sociais e marketplaces), destacam-se as seguintes: 

  • Regras para a remoção de bens, serviços ou conteúdos ilegais em linha;
  • Salvaguardas para os utilizadores cujos conteúdos tenham sido erradamente eliminados pelas plataformas;
  • Novas obrigações para as plataformas de maior dimensão, no sentido de tomarem medidas baseadas nos riscos existentes para evitarem abusos dos seus sistemas;
  • Amplas medidas de transparência, nomeadamente relativas à publicidade em linha e aos algoritmos utilizados para recomendar conteúdos aos utilizadores;
  • Novos poderes de fiscalização do funcionamento das plataformas, nomeadamente através da obrigação de partilha de informação com autoridades e investigadores;
  • Novas regras em matéria de rastreabilidade dos utilizadores empresariais nos mercados em linha, por forma a ajudar a localizar os vendedores de bens ou serviços ilegais; e
  • Um processo inovador de cooperação entre as autoridades públicas, de modo a assegurar uma aplicação eficaz e uniforme em todo o mercado único.

Em caso de incumprimento destas obrigações, o Regulamento dos Serviços Digitais determina que as coimas a aplicar poderão atingir até 6% do volume de negócios anual da empresa incumpridora.

Neste contexto, importa ainda referir que as plataformas que atinjam mais de 10% da população da União Europeia (i.e., mais de 45 milhões de utilizadores) ficam sujeitas a um conjunto de obrigações suplementares (desde logo, de avaliação periódica de risco e de auditoria, de transparência e segurança) e a uma nova estrutura de supervisão.

Como referido acima, este Regulamento não visa substituir a Diretiva sobre o Comércio Eletrónico, mas antes complementá-la (com exceção, naturalmente, das disposições daquela diretiva relativas à responsabilidade dos prestadores de serviços digitais). Estas novas regras irão igualmente complementar o Regulamento P2B, aplicável desde 12 de julho de 2020, e as alterações introduzidas pela Diretiva Omnibus (Diretiva 2019/2161, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de novembro de 2019), cujas disposições serão aplicáveis a partir de 28 de maio de 2022.

III. O Regulamento dos Mercados Digitais

O Regulamento dos Mercados Digitais, por sua vez, tem como principal objetivo impedir que as grandes plataformas em linha que exerçam uma função de intermediação entre empresas e clientes (os denominados “gatekeepers”) adotem práticas desleais que desvirtuem o normal funcionamento do mercado interno, como é o caso da utilização incorreta dos dados das empresas que nelas operam e o bloqueio do acesso dos seus utilizadores a alguns prestadores de serviços.

Para o efeito, este Regulamento propõe a criação de um conjunto de regras harmonizadas a nível europeu que definem e proíbem certo tipo de práticas desleais por parte dos gatekeepers, onde se incluem, entre outras, proibições de discriminação a favor dos seus próprios serviços, obrigações que visam assegurar a interoperabilidade, bem como obrigações de partilha dos dados que são disponibilizados ou gerados por utilizadores empresariais e os seus clientes na utilização da plataforma. Os gatekeepers terão igualmente de permitir que clientes e empresas celebrem negócios fora das suas plataformas.

De acordo com este diploma, uma plataforma será considerada como um gatekeeper sempre que se verifiquem, cumulativamente, os seguintes critérios:

  • Tenha um impacto significativo no mercado interno e esteja a operar em vários países da União Europeia. As empresas com um volume de negócios anual no Espaço Económico Europeu superior a 6,5 mil milhões de euros nos últimos três exercícios financeiros ou com uma capitalização de mercado média de 65 mil milhões de euros ou superior e que prestem serviços de intermediação em pelo menos três Estados-Membros, presumem-se que preenchem este critério;
  • Tenha uma forte posição de intermediação, o que significa que liga um número muito elevado de utilizadores a um grande número de empresas. Presume-se que uma empresa preenche este critério sempre que preste um serviço de intermediação com mais de 45 milhões de utilizadores finais mensais ativos na União Europeia e mais de 10 mil utilizadores empresariais anuais ativos estabelecidos na União Europeia no último exercício financeiro; e
  • Tenha (ou esteja prestes a ter) uma posição de mercado estável e duradoura. Presume-se que as empresas que preenchem os dois critérios anteriores nos últimos três exercícios financeiros cumprem este critério.

Como bem sintetiza o Comunicado de Imprensa da Comissão Europeia, o Regulamento dos Mercados Digitais:

  • Aplica-se apenas aos principais fornecedores de serviços básicos de plataformas mais propensos a práticas desleais, como é o caso dos motores de busca, redes sociais ou serviços de intermediação em linha, que se enquadrem nos critérios legais objetivos para serem considerados gatekeepers;
  • Define limiares quantitativos como base para identificar presumíveis gatekeepers. A Comissão terá igualmente poderes para designar empresas como gatekeepers, na sequência de uma investigação de mercado;
  • Proíbe determinadas práticas claramente desleais, tais como impedir os utilizadores de desinstalar softwares ou aplicações pré-instaladas;
  • Os gatekeepers terão de adotar medidas específicas, como permitir que o software de terceiros funcione corretamente e possa interagir com os seus próprios serviços;
  • Impõe sanções por incumprimento, que podem incluir coimas até 10% do volume de negócios a nível mundial dos gatekeepers, por forma a garantir a eficácia das novas regras. Para os infratores recorrentes, estas sanções podem também implicar a obrigação de tomar medidas estruturais, que podem incluir a alienação de determinadas atividades, quando não existam outras medidas alternativas igualmente eficazes para garantir o cumprimento das obrigações previstas; e
  • Permite que a Comissão realize investigações de mercado específicas para avaliar se é necessário acrescentar a estas regras novas práticas e serviços levados a cabo pelos gatekeepers, a fim de assegurar que as novas regras acompanham a rápida evolução dos mercados digitais.
IV. Próximos Passos

As duas propostas em apreço encontram-se em fase de consulta pública e serão agora discutidas pelo Parlamento Europeu e pelos Estados Membros através do Conselho Europeu. É expectável que estas negociações se prolonguem, pelo menos, por um período de 18 meses até à sua aprovação final.

Tendo em conta a relevância das alterações propostas, recomenda-se que as empresas previsivelmente afetadas com as mesmas procedam a uma análise detalhada dos seus termos e que, o quanto antes, iniciem os necessários procedimentos internos de avaliação de impacto e de definição de metodologia de implementação.

Lisboa, 6 de janeiro de 2021

Jorge Silva Martins
João Carminho